quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Realidade Irreal


O Sol penetrava as águas daquele rio, enfiava os raios escaldantes no fundo, partindo ao meio todas as gotas. Enquanto a sua frescura lhe molhava o corpo feminino e esguio, o vento, que corria de um lado para o outro apressado como se estivesse atrasado para algum encontro, batia-lhe agressivamente na cabeça e arrancava-lhe o cabelo molhado. O vulto feminino a boiar sobre a mais bela paisagem de sempre olhando o céu, pensava em como era bom a Natureza lhe poder tocar como se de um amante se tratasse. Acariciava-lhe a face, beijava-lhe os lábios com frescura, apaziguava a alma enquanto a embalava e mais que isso, amava-a mesmo sem saber de quem se tratava. Parecia tudo perfeito. Sentiu-se atraída e seduzida. Sentiu uma força a puxar-lhe as pernas. O corpo mergulhou… à superfície do manto brilhante feito de gotas via-se um braço aflito. As águas haviam traído aquele corpo. Bateram-lhe. Agarraram-lhe os cabelos e puxaram-no para o seu íntimo. Amarraram as suas mãos delicadas e prenderam-lhe os movimentos. A voz da pequena era abafada. Uma faca atravessava-lhe os pulmões, trespassava o coração, subia à garganta e descia aos músculos. Estava escuro. A vida em segundos estava a acabar. Bebeu com gula toda a água que lhe foi possível. Esperneou. Gritou. Chorou. Desesperou. Pensou. A água estava a engoli-la. Respirava. Não respirava. Respirava. Não respirava. O seu corpo havia ficado pesado. Paralisou. Não respirava. Não respirou mais. Morreu. Entregou-se ao seu amante.

domingo, 3 de janeiro de 2010

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Desde que o relógio de madeira velha marcava a meia-noite, tudo ficara pela metade. Do rosto dela brotavam lírios transparentes, que percorriam apenas o espaço vazio que havia entre o olhar e o olfacto. Do lado de fora da janela havia uma voz incansável que lhe preenchia o cérebro, pedindo-lhe que se atirasse em queda livre, pedindo-lhe que de uma vez por todas imobilizasse todos os músculos das pernas que há muito haviam desgraçado todo o corpo que suportavam, atirando-se cansadas para uma poltrona de vidro. Essa voz soava entre um ouvido e outro, batia na parede e voltava para dentro da cabeça daquele corpo feminino e (quase) sem vida.
Desde que a meia-noite fora lançada fortemente para a Lua, que os braços caíram cansados e frios, ficando pendurados sobre a esquina da rua suspensa. Os livros que as mãos iam decalcando devagar à medida que os olhos tentavam imaginar o contorno, ficaram pela metade como tudo naquela noite. Não sobravam forças, restava a certeza da profundidade da dor do precipício do seu coração amordaçado. A janela aberta parecia magnetizar-lhe os movimentos, fazendo-a mover devagar para o fim. A voz ténue ia ficando interiorizada à medida que o seu olhar vazio e frio se aproximava da escuridão do céu. Elevou as mãos nauseabundas de sangue à cara e procurou os pequenos lírios que havia semeado. Congelou-os. Deu um passo. Rasgou as pinturas dos sonhos. Queimou a fraqueza do seu corpo tornando-se ainda mais fraca. Caiu. Tornou-se inerte. A voz calou-se. A rua parou. A lua apagou-se. As gentes choraram o final de uma vida vivida na meação, sem visão, sem forças. Naquela noite em que tudo ficara pela metade, a metade volveu-se em nada. Cai o pano e mais uma peça termina.