quarta-feira, 25 de agosto de 2010

'


O coração havia-lhe rebentado nas mãos. Quando ela o tentou retirar do peito para verificar se ainda batia, todo o sangue que corria apressadamente entre as veias fez uma pintura abstracta no seu olhar. Tal qual bomba relógio que não permite pensar, os seus sentidos reagiram friamente ao fim lastimável da sua vida, quando em segundos tudo aquilo que a fazia viver se desmoronou à sua frente.

Sentou-se na poltrona de palha em frente à lareira com o coração na palma da mão esquerda, enquanto limpava as lágrimas com a outra mão. O sangue escorria-lhe pelos dedos trémulos e salpicava o chão com gotas de uma vida perdida. Pegou num velho livro que tinha lido há tempos atrás. As folhas estavam gastas e não se percebiam todas as palavras. Cuidadosamente começou a ler para o vento…sabia de cor todas as promessas que ali faltavam e todos os sinais de pontuação que inibiam o texto (in)completo. Aos poucos foi baixando o tom de voz até ficar apenas um sussurro a voar pelo pequeno quarto onde se encontrava. Sentiu-se fraca o suficiente para não querer mais lutar pela sobrevivência inútil. O coração havia-se tornado transparente tal como as palavras que já não existiam. As gotas de sangue tinham secado e os olhos dela fecharam-se com o tempo. As mãos não mais responderam e em segundos caíram sobre o colo, atirando o livro e o seu próprio coração para o piso ensanguentado. A cabeça rodou ligeiramente e das palavras que ditava, sobrou o eco suave das entrelinhas sofridas do seu coração. Fez-se silêncio e ela morreu, morreu de amor com o coração aos pés e a sua história escrita num livro eterno, a alma.

sábado, 14 de agosto de 2010

...


Desde que o relógio de madeira velha marcava a meia-noite, tudo ficara pela metade. Do rosto dela brotavam lírios transparentes, que percorriam apenas o espaço vazio que havia entre o olhar e o olfacto. Do lado de fora da janela havia uma voz incansável que lhe preenchia o cérebro, pedindo-lhe que se atirasse em queda livre, pedindo-lhe que de uma vez por todas imobilizasse todos os músculos das pernas que há muito haviam desgraçado todo o corpo que suportavam, atirando-se cansadas para uma poltrona de vidro. Essa voz soava entre um ouvido e outro, batia na parede e voltava para dentro da cabeça daquele corpo feminino e (quase) sem vida.

Desde que a meia-noite fora lançada fortemente para a Lua, que os braços caíram cansados e frios, ficando pendurados sobre a esquina da rua suspensa. Os livros que as mãos iam decalcando devagar à medida que os olhos tentavam imaginar o contorno, ficaram pela metade como tudo naquela noite. Não sobravam forças, restava a certeza da profundidade da dor do precipício do seu coração amordaçado. A janela aberta parecia magnetizar-lhe os movimentos, fazendo-a mover devagar para o fim. A voz ténue ia ficando interiorizada à medida que o seu olhar vazio e frio se aproximava da escuridão do céu. Elevou as mãos nauseabundas de sangue à cara e procurou os pequenos lírios que havia semeado. Congelou-os. Deu um passo. Rasgou as pinturas dos sonhos. Queimou a fraqueza do seu corpo tornando-se ainda mais fraca. Caiu. Tornou-se inerte. A voz calou-se. A rua parou. A lua apagou-se. As gentes choraram o final de uma vida vivida na meação, sem visão, sem forças. Naquela noite em que tudo ficara pela metade, a metade volveu-se em nada. Cai o pano e mais uma peça termina.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Desejos,


Esfomeadas, loucas, desejosas Gaivotas

Sobrevoam o teu corpo. Ardente, suada, excitada presa

Te tornas quando as penas sossegam a macia pele

Que te cobre o libido.

Debicam a prisão de luxúria que escondes nos poros.

Atacam o mais recôndito de ti querendo amar-te.

Levam a espuma da água límpida do mar

Ao encontro da tua boca semicerrada, seca e esfomeada.

“Desejas a carne nua no teu corpo”,

Dizem as gaivotas mergulhando no teu olhar.

Querem-te como a uma presa ávida de ser atacada.

Esfomeadas gaivotas

Sobrevoando um esfomeado corpo.

Apaixonada gaivota

Sobrevoando o teu corpo quente

Sedenta de ti, sedento de mim.

Sedentos de Nós.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Vem sentar-te ao meu lado, querido, e olha como o mar é tão incerto como a vida. Olha como as gaivotas o sobrevoam com fluidez mas respeito, e sente a chama de medo que as ondas lançam como flechas cortantes. Corre uma brisa fresca que me faz eriçar os poros molhados pela chuva. Tenho frio. Abraça-me agora, querido, como se fosses um cobertor de lã que aquece os lençóis congelados de verão. Aquece-me o corpo com a tua pele, e o coração com os teus olhos de fogo. Um fogo ardente que rasga a íris apaixonada entrando nela sem pudor. Tenho frio, mas com o teu corpo a envolver-me estou bem. Não sinto frio, sinto-te a ti.