domingo, 3 de janeiro de 2010

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Desde que o relógio de madeira velha marcava a meia-noite, tudo ficara pela metade. Do rosto dela brotavam lírios transparentes, que percorriam apenas o espaço vazio que havia entre o olhar e o olfacto. Do lado de fora da janela havia uma voz incansável que lhe preenchia o cérebro, pedindo-lhe que se atirasse em queda livre, pedindo-lhe que de uma vez por todas imobilizasse todos os músculos das pernas que há muito haviam desgraçado todo o corpo que suportavam, atirando-se cansadas para uma poltrona de vidro. Essa voz soava entre um ouvido e outro, batia na parede e voltava para dentro da cabeça daquele corpo feminino e (quase) sem vida.
Desde que a meia-noite fora lançada fortemente para a Lua, que os braços caíram cansados e frios, ficando pendurados sobre a esquina da rua suspensa. Os livros que as mãos iam decalcando devagar à medida que os olhos tentavam imaginar o contorno, ficaram pela metade como tudo naquela noite. Não sobravam forças, restava a certeza da profundidade da dor do precipício do seu coração amordaçado. A janela aberta parecia magnetizar-lhe os movimentos, fazendo-a mover devagar para o fim. A voz ténue ia ficando interiorizada à medida que o seu olhar vazio e frio se aproximava da escuridão do céu. Elevou as mãos nauseabundas de sangue à cara e procurou os pequenos lírios que havia semeado. Congelou-os. Deu um passo. Rasgou as pinturas dos sonhos. Queimou a fraqueza do seu corpo tornando-se ainda mais fraca. Caiu. Tornou-se inerte. A voz calou-se. A rua parou. A lua apagou-se. As gentes choraram o final de uma vida vivida na meação, sem visão, sem forças. Naquela noite em que tudo ficara pela metade, a metade volveu-se em nada. Cai o pano e mais uma peça termina.

9 comentários:

  1. A capacidade de transformar um momento altamente caótico e dramático num texto com uma beleza e uma poética extraordinárias!!!

    Amo Você!!!

    ***

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  2. Camila,

    O teu belissimo texto, motivou-me este pequeno ensaio...


    De um céu de Magritte pendem ainda os filamentos avulsos dos enfeites de Natal, que a chuva vai conduzindo à degradação, vertendo lágrimas vermelhas de anilina. Assim é o reverso da festa, o lugar de uma luz gelada que fixa os recortes da vertigem, os corpos moribundos e os rostos cansados que enfrentam a sentença das pequenas horas, sem meméria nem futuro. Tudo se consome no desalento, sob a voz impúdica e enfraquecida das silabas, já incapazes de nos absolverem do caos...
    Chegou a hora dos vultos predadores e sombrios volverem a esquina, perante os olhos incautos e cegos pelo apagar da luz. Alguém tenta tactear a proximidade fria de uma mão, procurando conforto na consumação da carne que se extingue no crepúsculo.
    A metade de nada volveu-se em nada. Cai o pano.
    Nas profundezas de um coração, a peça termina, até que o sol demande os deuses na senda dos prodígios!


    Para ti... com um beijo!
    AL

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  3. Conheço bem essas vozes. Os sentimentos ( ou a ausência deles). A sensação de ter o coração amordaçado. Só não conhecia esta música de fundo, apaixonei-me. É simplesmente lindíssima!


    Obrigada por lá passares! beijos

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  4. É uma linda mensagem camila! Obrigado pela visita e pela gentileza.
    beijo, ótima semana

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  5. Bem vinda à blogosfera, espero e desejo que seja muito feliz por aqui.

    Grata pela visita.

    Beijinhos e que 2010 seja o ano de todas as realizações.

    Ana Martins

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  6. Olá Camila,
    grata pela visita aos universosquestionáveis,
    encontro aqui um espaço jovem, acabado de nascer, texto complexo que merece uma releitura.
    Se tudo ficou pela metade, pelo menos que fique a metade melhor.
    Até breve e sorrisos

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  7. Olá, Camila.
    Antes de mais, parabéns pela escrita literária da publicação (primeira? Espero que de muitas...). Foi, sem dúvida, uma partilha de algo profundo e poético... em prosa. Gostei!
    Deixo um bj e votos de um bom ano 2010!

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  8. "A vida é uma peça de Teatro que nao permite ensaios!" Alguém disse isto e disse muito bem!
    Cada dia que passa é mais uma serie de subidas e descidas do pano, de forma a mudar os actos da nossa peça.
    Na nossa peça existem protagonistas, actores secundários e figurantes. E tu és uma das protagonistas da minha peça.
    Contigo quero partilhar o palco da minha vida até sempre. Quero'te por inteiro comigo, sem metades. Quero partilhar contigo as metades que vão ficando, e quero também que partilhes comigo cada uma dessas tuas metades!

    "Conta contigo, Comigo podes sempre contar!" <3

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  9. Subi ao alto, à minha Torre esguia,
    Feita de fumo, névoas e luar,
    E pus-me, comovida, a conversar
    Com os poetas mortos, todo o dia.

    Contei-lhes os meus sonhos, a alegria
    Dos versos que são meus, do meu sonhar,
    E todos os poetas, a chorar,
    Responderam-me então: “Que fantasia,

    Criança doida e crente! Nós também
    Tivemos ilusões, como ninguém,
    E tudo nos fugiu, tudo morreu!…”

    Calaram-se os poetas, tristemente…
    E é desde então que eu choro amargamente
    Na minha Torre esguia junto ao céu!…

    Florbela Espanca - O Livro das Mágoas

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