sábado, 14 de agosto de 2010

...


Desde que o relógio de madeira velha marcava a meia-noite, tudo ficara pela metade. Do rosto dela brotavam lírios transparentes, que percorriam apenas o espaço vazio que havia entre o olhar e o olfacto. Do lado de fora da janela havia uma voz incansável que lhe preenchia o cérebro, pedindo-lhe que se atirasse em queda livre, pedindo-lhe que de uma vez por todas imobilizasse todos os músculos das pernas que há muito haviam desgraçado todo o corpo que suportavam, atirando-se cansadas para uma poltrona de vidro. Essa voz soava entre um ouvido e outro, batia na parede e voltava para dentro da cabeça daquele corpo feminino e (quase) sem vida.

Desde que a meia-noite fora lançada fortemente para a Lua, que os braços caíram cansados e frios, ficando pendurados sobre a esquina da rua suspensa. Os livros que as mãos iam decalcando devagar à medida que os olhos tentavam imaginar o contorno, ficaram pela metade como tudo naquela noite. Não sobravam forças, restava a certeza da profundidade da dor do precipício do seu coração amordaçado. A janela aberta parecia magnetizar-lhe os movimentos, fazendo-a mover devagar para o fim. A voz ténue ia ficando interiorizada à medida que o seu olhar vazio e frio se aproximava da escuridão do céu. Elevou as mãos nauseabundas de sangue à cara e procurou os pequenos lírios que havia semeado. Congelou-os. Deu um passo. Rasgou as pinturas dos sonhos. Queimou a fraqueza do seu corpo tornando-se ainda mais fraca. Caiu. Tornou-se inerte. A voz calou-se. A rua parou. A lua apagou-se. As gentes choraram o final de uma vida vivida na meação, sem visão, sem forças. Naquela noite em que tudo ficara pela metade, a metade volveu-se em nada. Cai o pano e mais uma peça termina.

2 comentários:

  1. tenho um inicio de uma historia neste paradao:)

    ResponderEliminar
  2. "Nunca foste tempo no fecundo do olhar. A queima do dia no relançar dos lobos e silêncio. Sei que estás nos espelhos de minh´alma. Quem tem medo do lobo mau?"Pascoal

    ResponderEliminar