Desci aquela rua, a mesma de sempre, mas não como
das outras vezes. À medida que os meus pés sentiam o chão, ia-me lembrando de
como era bom ter os sentidos aguçados. Desci a rua, sozinha, como tantas
vezes ultimamente. Imaginei tudo o que aquela calçada teria sentido, um dia.
Sentia as pedras feridas. Imaginei tamanquinhas de madeira a pisarem-na,
sapatos de verniz, sandálias frescas das meninas de tranças e bonecas de
trapos nas mãos. Tantas vidas, tantos passos, tantas diferenças marcadas nas pedras da
calçada. Imaginei que a chuva corria entre as falhas do caminho. Que as
lavadeiras, que trauteavam cantigas de amores passados, se reuniam ao nascer do
Sol para lavarem a roupa tingida de mágoas, desafinarem destinos alheios e
reverem-se na água fresca, como um reflexo ensaboado de rugas. Imaginei as violações de almas na escuridão das vielas.E tremi. Fugi delas. Desci. Cruzei-me com
velhas almas que, outrora, foram crianças cheias de sorrisos presos aos
cabelos, e doces sonhos amarrados aos pulsos, como balões coloridos. Hoje
precisam de mim. Dou-lhes a mão, a minha trémula, a deles, firme e sábia. Subo
a rua. A calçada está seca e quente, reparo que é Verão e não havia embriaguez nas
pedras do chão. Chove em mim, apenas em mim, nas minhas vielas. Nos meus dedos, que desenham o
coração, há lágrimas penduradas que borratam a tinta. Percorri a rua com sonhos,
afigurei uma infância.
Respirei.
Galguei-a de novo, com os meus velhos fantasmas,
firmes, pela mão.
A viela.
A rua. Todas as ruas da minha vida.
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